Parte 1 – A África inventada
É recorrente, nos compêndios que apresentam a idéia de uma história da civilização ocidental, o equívoco no tratamento do referencial que diz respeito ao continente africano e às suas gentes...
Ao lado deste, outro tema que merece ser focalizado diz respeito à questão da história. Pela ocultação da complexidade e da dinâmica cultural própria da África, torna-se possível o apagamento de suas especificidades em relação ao continente europeu e mesmo ao americano. Quanto às diferenças, são tratadas segundo um modelo de organização social e política, bem como de padrões culturais próprios da civilização européia...
O problema posto nesta lógica interpretativa possibilita que o diverso, no caso a África, seja enquadrado no grau inferior de uma escala evolutiva que classifica os povos como primitivos e civilizados. Mas qual África?
Conforme o discurso instruído, teria havido uma cisão, em tempos remotos, entre uma África branca com características mais próximas das ocidentais, mediterrâneas, e uma África negra, que se ignoravam mutuamente porque separados pelo deserto do Saara, ficavam privadas de comunicação...
Torna-se, portanto, evidente a existência de duas Áfricas com aspectos geográficos diferentes, classificadas em estágios de desenvolvimento diversos, povoadas por etnias distintas, branca e negra e, por fim, uma com e a outra sem história. Nessa perspectiva a África ao sul do Saara, até hoje conhecida como África negra, é identificada por um conjunto de imagens que resulta em um todo indiferenciado, exótico, primitivo, dominado, regido pelo caos e geograficamente impenetrável...
Outro modo de abordar a questão da historicidade é considerá-la problema histórico e político, referindo-a à identificação de um ponto fixo no real, a partir do qual é datado o começo da história da África. A determinação do referido ponto recaiu no tráfico negreiro e na colonização da América, reforçando estereótipos raciais presentes até os nossos dias. A partir do momento em que foram utilizadas as noções de “brancos” e “negros” para nomear, de maneira genérica, os europeus colonizadores e os africanos colonizados, os segundos têm de enfrentar uma “dupla servidão”: como ser humano e no mundo do trabalho. O negro marcado pela pigmentação da pele, transformado em mercadoria e destinado a diversas formas compulsórias de trabalho, também é símbolo de uma essência racial imaginária, ilusoriamente inferior.
Fonte: Hernandez, Leila Leite. A África na sala de aula – visita à história contemporânea. 2ª Ed. São Paulo, Selo Negro, 2008, pp. 17-23
Parte 2 – A variedade de povos
A África nilótica e saariana
As informações mais antigas acerca dos povos africanos referem-se ao Egito, onde floresceu a 5 mil anos, no vale do rio Nilo, uma civilização que durou mais de 2 mil anos e deixou algumas marcas de sua grandeza, como os túmulos reais e as pinturas. Ainda na região do Nilo, outra civilização grandiosa foi a Núbia (750 a.C.), localizada na forquilha formada pelo encontro do Nilo Branco com Nilo Azul. Nessa região localizada no atual Sudão, houve sucessivos reinos que se impuseram sobre seus vizinhos...
Desde o ano 100 havia cristãos em Alexandra, no Egito; e no século IV o evangelho era pregado na Núbia, que se ligava tanto ao Egito, pelo rio Nilo, como à Palestina, pelo Mar Vermelho. Na Etiópia no sul da Núbia, o cristianismo chegou principalmente pelo mar Vermelho e resistiu à constante pressão que o islamismo exerceu sobre ele.
Essa região era habitada por povos oriundos da península Arábica, misturados com populações originárias do continente africano...
Os habitantes do norte da África, onde hoje se localizam a Líbia, a Tunísia, Argélia e o Marrocos eram conhecidos como berberes e sofreram forte influência árabe desde o século VII...
O deserto do Saara era, como ainda é, habitado por uma variedade de povos nômades, que o conheciam muito bem. Esse conhecimento fazia deles os guias que tornavam possível o trânsito de pessoas e produtos por região tão inóspita. O camelo, animal trazido da península Arábica – embora já existente no Egito antigo – passou a ser usado com mais frequência somente a partir do século IV da nossa era. Com ele as condições de circulação pelo deserto melhoraram muito, graças à sua força e à sua capacidade de ficar muitos dias sem comer e sem beber água. O camelo facilitou a comunicação através do deserto e sustentou um comércio que uniu o Sael ao norte da África e ao Mediterrâneo. Daí as cargas ainda seguiam para a península Arábica e para o mar Vermelho por terra e por mar.
Os comerciantes tuaregues ligavam toda a região do Sael, no passado conhecido como Sudão – em árabe Bilad-al-Sudan (que quer dizer terra de negros) – ao norte islamizado da África. Eles foram os principais difusores do islã por toda essa região que corresponde mais ou menos aos atuais países do Sudão, Chade, Níger, Mali, Burquina Faso, Mauritânia e Saara Ocidental. Foi aí que se formaram os antigos impérios de Gana (séculos VI a XIII), Mali (séculos XIII a XVII) e Songai (séculos XVII e XVIII).
Para a existência de todos esses impérios foram decisivas as condições físicas do delta interior do Níger, como é chamada a região onde esse rio faz uma acentuada curva para o sul. Na altura dessa curva forma-se uma rede de rios e canais interligados que fertilizam a região vizinha do Saara. Essa fertilidade garantiu o sustento de muita gente, tanto nativa como a que estava de passagem.
Esses rios também favoreciam as atividades comerciais, que se serviam deles como vias de locomoção. As canoas eram os principais meios para transportar as cargas das caravanas que iam e vinham ligando as áreas de floresta ao deserto e aos portos do Mediterrâneo, aos quais as mercadorias chegavam em lombos de camelo.
Nas cidades mais frequentadas pelos comerciantes, que por ali circulavam desde o século VI, e onde as terras eram mais férteis, como Tombuctu, Gaô e Jené, no atual Mali, havia muito azenegues e tuaregues e outros berberes, todos eles povos arabizado. Mas os povos que moravam nessas regiões eram diferentes desses habitantes do deserto e do norte da África e não eram muçulmanos. Ali viviam principalmente mandingas e fulas, mas também uma variedade de outros grupos que faziam questão de se manter diferentes de seus vizinhos, mesmo convivendo lado a lado. Além de comerciar com os nômades do deserto do Saara, eles eram pastores, cultivavam alimentos, faziam tecidos e cerâmicas e trabalhavam o couro.
(...)
Do século XII ao XIX a cidade mais famosa dessa região foi Tombuctu. Era ponto de descanso das caravanas que atravessavam o deserto, e nela várias rotas comerciais se encontravam. Foi considerada o elo entre a África negra, o mundo muçulmano e a Europa, sendo o centro dos impérios que ali existiram desde cerca o ano 1000 de nossa era. Pelos seus caminhos passavam o sal, o ouro, tecidos e grãos, noz-de-cola, peles, plumas, essências, marfim, instrumentos e enfeites de metal, contas, objetos de cerâmica e de couro, vindos de diversas regiões.
Entre o Saara e o Atlântico
O que chamamos de África ocidental é a região que se estende do rio Senegal ao rio Cross , mais ao sul. Existem ai muitos rios, que são separados do deserto pelo traçado do rio Níger. Este e o Senegal nascem nas mesmas terras altas, chamadas Futu Jalom. Enquanto o rio Senegal segue direto para a costa e deságua no oceano Atlântico, o rio Níger corre para o interior, em direção ao deserto. Na altura do golfo da atual Nigéria, o seu curso faz uma curva de 90 graus para o sul e mergulha em zonas de floresta, rumo ao Atlântico, onde deságua num grande delta.
(...)
Na região que abrange do leste do rio volta até o delta do Níger – terra dos (...)povos iorubas e muitos outros – existiam reinos, cujos chefes controlavam áreas consideráveis, se cercavam de pompa e privilégios, promoviam a construção de edifícios elaborados e estimulavam a confecção de objetos que impressionam até hoje pela beleza. Esses reinos tinham ligações entre si e com Ifé, espécie de cidade-mãe na qual se originaram as formas de organização política e social das outras cidades da chamada Iorubalândia ou Iorubo. Dessa região saiu grande parte dos africanos traficados para a América como escravos, por causa das vantagens que apresentava, como a abundância de oferta. Esses eram os prisioneiros das guerras entre diferentes grupos locais, vendidos aos comerciantes europeus.
Os bantos da África central
Mais ao sul, na região do rio Congo, viviam e vivem, povos que chamamos de bantos, que tem uma origem comum, falam línguas semelhantes, e suas religiões e maneiras de se organizar são parecidas. Eles teriam partido do atual Camarões, de onde se espalharam por toda a África central, oriental e do sul, onde antes viviam povos com um tipo físico diferente, de baixa estatura e cujo idioma era caracterizado pela emissão de estalidos. Esses povos eram nômades e viviam de caçar e coletar o que encontravam na natureza. A partir de 1500 a.C. foram afastados ou se misturaram a grupos bantos, que fizeram a maior migração que se tem notícia na África... Eles eram agricultores, sabiam fazer instrumentos de ferro e iam ocupando terras desabitadas, se misturando aos antigos moradores ou expulsando-os para outros lugares.
(...)
Nas bacias dos rios Congo e Cuanza e nas terras ao redor também havia, como na África ocidental, uma variedade de povos falando línguas aparentadas, com modos de vida semelhantes (...).
Mais ao sul viviam os remanescentes dos povos coletores e caçadores desalojados pelos bantos, os bosquímanos e também os hotetontes, que haviam aprendido a pastorear o gado.
Fonte:Souza, Marina de Mello e. África e Brasil Africano, 2ª Ed., São Paulo, Ática, 2007, pp.14-23.
Nenhum comentário:
Postar um comentário